Jorge Ortolá

18 de Dezembro de 2013

Um individuo para ser condutor, seja de que categoria de veículo for, tem de apresentar condições psicofísicas enquadradas com as que o regulamento prevê. Ou seja, mesmo apresentando algum tipo de problema, a legislação prevê adaptações ao veículo, adaptações estas que serão consagradas na respetiva carta de condução através de códigos homologados.

Uma avaliação médica para candidatos à aquisição de carta de condução deve, segundo o mesmo regulamento, incidir sobre diversos pontos. Pretende-se com isso garantir que nas estradas vão circular condutores física e emocionalmente capazes, mesmo que para tal se tenha de adaptar o veículo ao condutor.

Os bons profissionais existem

Como em todas as profissões existem os bons e os maus profissionais. Aqueles que desenvolvem a sua atividade com paixão, tentando a perfeição e os que a desenvolvem por necessidade de labor. Quando se fala numa avaliação médica para perceber se um individuo está capaz de assumir os comandos de uma máquina que, se não for bem manejada pode matar outrem, ainda mais atento na avaliação médica deve estar o profissional.

Vou abordar hoje três das muitas situações com que convivi ao longo dos meus mais de vinte anos de profissional do ensino de condução automóvel. Os nomes que utilizarei serão ficticios, mas as situações serão descritas o mais próximo possível à lembrança que a minha memória me permita alcançar.

O caso de Nelson

Nelson era um rapaz que mal sabia ler e escrever. Tinha um atraso mental e frequentava uma dessas instituições que dão apoio a pessoas com deficiência mental. Aliás, era a instituição que através da sua viatura que deslocava o Nelson até à escola de condução e daí o recolhia. Nelson apresentou-se na escola de condução com uma avaliação médica (atestado) emitida pelo médico que prestava serviços na dita instituição.

No documento do atestado médico não constava qualquer restrição identificada. Ou seja, aquele rapaz que frequentava a instituição de apoio a pessoas com deficiência mental, tinha uma avaliação médica emaculada, sem referencia a qualquer problema do foro psíquico e ainda mais, emitida pelo médico que prestava serviço na instituição.

O Nelson, para além do problema visível, era consumidor crónico de bebida alcoólica. Algumas foram as vezes em que frequentou aulas teóricas e práticas em estado de embriaguez visível. Em algumas lições práticas chegou mesmo a adormecer enquanto conduzia, havendo necessidade de intervenção do formador para controlar a trajetória do veículo.

Incrivelmente o Nelson aprovou no exame teórico de condução à primeira tentativa. O Nelson, que escrevia o seu nome e pouco mais. Mas, à minha pergunta sobre como o tinha feito, respondeu-me “Ao calhas”. Foi um “calhas” com muita sorte. E assim o método de avaliação do exame teórico de condução aprovou um individuo que nada sabia de legislação do código da estrada.

Felizmente para todos nós, quantos circulamos nas estradas, não me recordo porquê, o Nelson desistiu de adquirir a carta de condução. Mas a verdade fica. O Nelson teve uma aprovação na avaliação médica e outra na avaliação teórica, sem que para alguma tivesse aptidão.

Avaliação médica

Paulo, um toxicodependente emocionalmente alterado

Paulo sempre foi um rapaz que, a bom da verdade, apesar de por vezes apresentar uma impaciência e inquietude  em nada normal, nunca tinha apresentado um estado de alteração emocional como no dia que antecedeu o dia do exame prático de condução automóvel.  O Paulo apresentou uma avaliação médica onde não constava qualquer restrição à sua condição psicofísica.

Também aqui nada constava porque mais uma vez esta avaliação médica foi, certamente, feita sobre o joelho, sem que se tentasse conhecer minimamente o individuo que se estava a avaliar.  O Paulo era toxicodependente de drogas pesadas, mas como acontece com milhares de atestados de avaliação médica, nem uma análise ao sangue ou urina é efetuada, ECG ou histórico de saúde avaliado.

Não fosse o Paulo ter tido um maus dia de “ressaca” em que se descontrolou emocionalmente em pleno centro de exames, ameaçando de morte diversas pessoas e com comportamentos animalescos, o que levou a que o IMT solicitasse um pedido de avaliação psicológica, e hoje ele circulava livremente e encartado nas estradas portuguesas. A avaliação psicológica efetuada pelo IMT concluiu que o Paulo não reunia condições emocionais adequadas, dando-o como inimputável para a aquisição de carta de condução.

Hora e meia de avaliação médica

Recordo-me, certo dia, da doutora… vamos chamar-lhe Marina, ter demorado hora e meia numa avaliação médica a um rapaz, de aparência normal, se assim o posso classificar, mas que não falava muito.  Cerca de noventa minutos fechada com o António para, no final desse tempo, não atestar e enviar para avaliação do senhor Delegado de Saúde da área do Concelho em questão.

Mais tarde soube-se, porque há contactos e tudo se acaba por saber, ou não estaríamos num país onde a fuga de informação existe, que o António foi encaminhado para uma Junta Médica que lhe acabou por recusar a emissão do atestado médico positivo. Um problema do foro psicológico esteve na causa da reprovação.

Se hoje o António procurasse muitos dos médicos que por aí andam e fazem vida de atestados passados de olhos fechados e escritos nas costas dos avaliados, certamente já teria o seu documento e sem restrições que condicionassem a realização do processo formativo para a aquisição da carta de condução fosse ela da categoria que fosse.

A questão é simples; quem controla, como controla, quando controla a emissão dos atestados médicos? É que anda por aí muito boa gente sem condições emocionais válidas, a ver pela amostra da sua postura rodoviária, para conduzir um triciclo de criança, quanto mais um automóvel ou um motociclo. Para bom entendedor, meia palavra basta.

Fotos¦ Ypy31 e Steven Gest