Duarte Paulo

10 December, 2019

Quando propus este artigo o meu editor disse que era “demasiado radical”, mas que entendia o ponto de vista que eu pretendia transmitir. Mas afinal estarão os carros estarão próximos da extinção?

Em especial nos últimos anos foram exploradas novas fronteiras da indústria automóvel. Praticamente tudo mudou, desde a maneira como os carros são idealizados e produzidos, passando pelos novos regulamentos a que estão sujeitos, até á forma como são usados.

Podemos discutir a natureza, o ritmo e as consequências a longo prazo dessas transformações. Serão elas meramente “perturbações” momentâneas ou evoluções que encaminharão o automóvel para uma rota diferente da que conhecemos? Será que os “players” tradicionais conseguirão manter o comando na indústria? Ou o palco será tomado por novos atores que derrubarão os antigos líderes, levando à sua extinção?

Os desafios

Existem desafios teóricos e metodológicos que estão a ser colocados pelas muitas mudanças por que passa a indústria automobilística atualmente. As marcas mais tradicionais introduzem apenas mudanças “pequenas”, algumas até acessórias, de forma muito pausada e intercalada com ciclos de produtos longos.

Contudo, algumas das novas marcas surgem com inovações que são de rutura em relação ao estabelecido. Essas ruturas são a diferentes níveis. Vão desde os já falados métodos de conceção ou produção, mas vão mais além. Chegam ao ponto de romper com os modelos estabelecidos na própria distribuição e comercialização dos veículos.

Estes podem abrir o mercado de forma inesperada, veja-se o que a forma de comercializar transportes pessoais em veículos particulares, provocou. O mercado hoteleiro e até o alojamento local estão a sofrer uma revolução idêntica, com a comercialização de quartos, camas ou sofás em casas particulares. Retirando clientes aos hotéis tradicionais forçando-os a baixar preços e consequentemente margens. Mas aumentando as escolhas dos potenciais clientes.

Todos estes fatores ajudam as novas marcas a ganhar mercado, crescendo na indústria, mas mudando-a profundamente ao mesmo tempo. Surge então a suposição de que o conhecimento acumulado nas indústrias e empresas pode não ser pertinente, ou suficiente, no futuro. É necessário entender o que está acontecendo.

As mudanças recentes são trazidas por tecnologias e empresas de fora da indústria automóvel. Principalmente pelas empresas tecnológicas e da área digital. A dificuldade maior agora é a de trabalhar com previsões e expectativas, cuja previsibilidade e probabilidade são, por definição, discutíveis e incertas.

A indústria automóvel está passando por uma mudança de paradigma

A noção de mudança de paradigma pode ser caracterizada pela mudança tecnológica, mas também como um processo social e coletivo. São conhecimentos compartilhados por milhões de consumidores que aceitam, digo mais, que abraçam as novidades que trazem as novas tecnologias.

As trajetórias tecnológicas que se vislumbram trazem uma noção que o caminho a percorrer estarão associadas à implementação progressiva das inovações. Ultrapassando definitivamente os limites subjacentes do paradigma atual. Mas os paradigmas também estão associados a mudanças nas opções pessoais. E conjuntamente, à medida que mudam as expectativas, mudam as escolhas, ajustam-se os regulamentos e o novo comportamento torna-se o “novo normal”.

Quando olhamos para a eletrificação dos carros vemos a promessa de veículos 100% autónomos. A expansão de novas formas de mobilidade e as perspetivas de fábricas inteligentes e novas formas de utilização. Os desenvolvimentos tecnológicos estão levando a mudanças profundas, levando à extinção de alguns nichos e ao surgimento de outros. Os que estão neste momento “sobre a mesa de negociações” são a propriedade privada e o fato de serem conduzidos por humanos ou de forma autónoma.

Esta é uma proposta autónoma de viagens partilhadas, basicamente é um transporte público autónomo.

O comportamento dos consumidores também sugere que a transição pode ser controversa, em particular no que diz respeito ao seu grau de inclusão social. Como os novos veículos, mais avançados tecnologicamente, são mais dispendiosos só os que têm mais posses conseguem adquiri-los. Para os que tem menos posses “sobram” os veículos mais simples, menos tecnológicos e menos ecológicos, por norma, penalizados e sancionados por novos regulamentos ambientais.

Os carros estarão próximos da extinção?

Com todas as evoluções que são aqui descritas, com certeza que os carros do futuro não serão iguais. Quase garantidamente terão motores elétricos, serão autónomos, serão mais resilientes em termos de cibersegurança. Mas será que isso implica que deixarão de ser chamados de automóveis?

Podem até serem designados por outro nome, mas enquanto circularem por terra julgo que serão chamados de automóveis. Na continuação da evolução, quando existirem versões “premium” que voem, encurtando distâncias de viagem e tempo de deslocações, aí poderão ser chamados de “aviões autónomos”?

Porém quando chegar esse momento as mentalidades terão evoluído, assim como as vontades. Entregando totalmente a rédea aos sistemas eletrónicos, desde o controlo dos comandos do veículo assim como da sua manutenção programada, pois o veículo, naturalmente, irá passar a se deslocar sozinho para a oficina para as mudanças de componentes que sejam necessários.

A propriedade deixará de fazer sentido ser individual. Se analisarmos a utilização corrente dum veículo num dia normal ele passa 22 ou 23 horas parado. O que financeiramente não é rentável, nem lógico. O mesmo veículo poderia ser usado por diversas pessoas diluindo o custo por vários utilizadores. Portanto os carros estarão próximos da extinção, da forma como os conhecemos.

A evolução vista por outro prisma

A China está estimulando os seus fabricantes a seguirem a “onda” da eletrificação e da automação, o que representa uma forte aposta na evolução tecnológica. As empresas digitais americanas de Silicon Valley também estimulam os veículos autónomos e conectados à net. A Alemanha apoia a elevação do “status” dos carros como uma forma de agrupar todas essas novas tecnologias e preservar a sua posição de principal exportadora de produtos “premium”. O Japão segue sua própria trajetória em direção a tecnologias ecológicas baseadas em veículos híbridos e a células de combustível.

Algumas das questões-chave dizem respeito à posição dos países do “sul do globo”, pois a maioria dessas tecnologias parece ser desenvolvida e controlada pelo “norte global”. Essas transformações tecnológicas afetam as cadeias globais de valor? Será que criam novas oportunidades para que a atualização tecnológica ocorra em países emergentes? Ou simplesmente reforçam a hegemonia das empresas multinacionais do “norte do globo” sobre propriedade intelectual e respetiva criação de valor?

Existem padrões alternativos de desenvolvimento tecnológico para os países emergentes e suas indústrias automotivas? Se sim, que tipo de estratégias firmes e regulamentações governamentais poderiam promovê-las? Uma “obrigatoriedade mundial”, basicamente a criação de padrões gerais, poderia ser a solução ou uma forma mais rápida de extinção. Dessa forma o custo de desenvolvimento das novas tecnologias seriam diluídas pela elevada produção. Os “topo de gama” seriam sempre outra história.

Entre outros o mercado de trabalho será muito afetado

Mudanças de paradigmas são historicamente associadas a mudanças no equilíbrio de poder. Sejam entre pessoas, empresas, indústrias ou nações todos criam ruturas e atritos. A digitalização adicional da indústria está ameaçando centenas de milhares de empregos, tanto na indústria automobilística quanto na economia em geral.

A utilização intensiva, nalguns casos quase exclusiva, de robot’s leva à dispensa da necessidade de trabalhadores.

As previsões de despedimentos por todas as principais marcas tradicionais, em especial nas europeias, mostram que as ruturas e mudanças já estão a começar. O velho paradigma das relações de trabalho corporativistas que governaram os grandes fabricantes mundiais está, na melhor das hipóteses numa crise prolongada e, na pior das hipóteses, chegando ao seu fim.

A evolução da indústria automóvel nos países emergentes seguiu um caminho diferente, baseado em produtos acessíveis e pouco tecnológicos, mas não parece levar a um novo paradigma social sustentável. Apesar da forte atualização económica na maioria dessas indústrias, a atualização social não está realmente acontecendo.

Nesses países os trabalhos mais básicos são muito mal remunerados, precários e, em alguns casos, informal. As “extremidades inferiores” das cadeias de produção, mesmo nas fábricas principais desse setor, já foram caracterizadas por empregos bem remunerados e estáveis. Hoje esse horizonte mudou. Será que os carros estarão próximos da extinção? Ou tambem estejam em causa os “bons empregos” nesta industria. Na verdade muitos dos trabalhos desta industria estão em risco.

Fotos | Wikipédia, Flickr, Wikimedia Commons

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